quinta-feira, 28 de março de 2013

A Beleza que pagamos

Por Marcelo Lopes


Narciso (1594-1596), por Caravaggio
Eco e Narciso são duas figuras míticas que, como arquétipos, desenham muito bem histórias contadas e recontadas através dos tempos. A primeira personagem era uma bela ninfa, apaixonada pelo segundo, um jovem de beleza incomparável, cuja consciência da sua graça o levava a se achar semelhante a um deus. Eco, sem ter seu amor correspondido, definhou melancolicamente, o que fez a deusa Némesis lançar sobre Narciso uma lição à altura da sua frivolidade: o jovem apaixonou-se por seu próprio reflexo na água na lagoa de Eco, onde se deitou num banco, admirando seu próprio reflexo, embelezando-se, enquanto consumia-se pouco a pouco. Mais tarde, ao procurarem seu corpo, encontraram apenas uma flor, que hoje leva o seu nome.

Venus Anadyomene, óleo por Tiziano Vecelli
Mitos que tem por tema a beleza povoam a história humana e mudam de tempos em tempos, de acordo as transformações do olhar do homem sobre o mundo que o cerca. As beldades da Renascença, por exemplo, tinham por característica o reconhecimento de suas celulites e pneuzinhos à mostra, fartura em carnes e muito lugar para “dar uma apertadinha”, revelando mais do que a voluptuosidade do seu corpo: num tempo em que comer bem e bastante era um privilégio ainda maior que hoje, demonstravam representar o ideal da beleza ao mostrarem-se bem nutridas. Um padrão de beleza estendido por séculos afirmando categoricamente que não haveria coisa mais linda neste mundo que uma gordinha nua.

Se as pinturas e esculturas clássicas perpetuavam padrões corporais ideais, referências máximas a serem seguidas na busca da beleza para homens, e muito especialmente, para mulheres, o acesso popularizado a outras e mais diversas imagens com o advento do cinema e da TV, criou mitos inalcançáveis de outra ordem de beleza, cercados de narrativas heroicas e sedução à flor da pele. Assim, de Rodolfo Valentino a Errol Flynn e Clark Gable, de Rock Hudson a Tom Cruise, passando por Greta Garbo, Rita Hayworth, Marilyn Monroe, Sharon Stone a Charlize Theron e Megan Fox, todos os mitos do cinema carregam para fora das telas doses cavalares de uma beleza que vai além dos próprios atores que os encarnam. Estes, contando do início do século para cá, tiveram seu padrão mudado radicalmente: os homens se tornando mais musculosos; as mulheres emagrecendo até não sobrar mais onde pegar.

A era do Photoshop: ideal de beleza além da beleza
O mundo que antes sustentava a beleza como um ideal, um status e um privilégio de poucos - manipulados no presente e na posteridade -, passou a transformá-lo numa construção que difunde um ideal do belo como algo vendável, comercializável, atingível na medida do bolso de cada um. Esta falsa democracia acirra o desejo humano na busca de um padrão cada dia mais inalcançável. Se anteriormente as revistas da moda e os anúncios já mascaravam com retoques à mão as fotos das modelos, o atual grau de refinamento da manipulação digital das imagens gera reconstruções corporais completamente irreais de tão perfeitas. Para esse novo ideal estético, que corrige as imperfeições, as curvas do corpo, vincos da pele, texturas e rugas, são anulados não apenas o que nos torna humanos, mas também aquilo que nos marca a história do corpo através do tempo. Temos, neste novo modelo, um padrão de tão alto nível de perfeição que não basta recorrer à saúde do corpo, é preciso ir além e nos tornarmos, pelo poder da maquiagem digital e da ponta de um bisturi, a reconstrução modelada de outro tipo de ser humano, edificado para atender não as exigências da saúde, mas aos apelos infinitos do desejo e do consumo.

Desta forma, assim como Narciso, um número cada vez maior de pessoas definha frente a um reflexo cuja imagem exige cada dia uma meta de beleza infinita. Exaltam a frivolidade e a superficialidade, que vem em anexo a um consumo desenfreado, nos estimulando em camadas e camadas de discursos midiáticos. Os reality shows, as modelos bombadas que exibem seus corpos nas TV’s e revistas, e as propagandas - que, sob quilos de maquiagens, cremes e imersões, prometendo o impossível - são reflexo e causa desta busca frenética. Cada dia mais os jovens querem permanecer mais jovens e os mais velhos buscam esticar sua juventude ad infinitum, numa luta desigual contra o tempo e o corpo. Têm, todos eles, flutuando sobre o ombro esquerdo, um capetinha miniatura que sussurra ao seu ouvido que é possível vencer essa peleja, enquanto, no outro ombro, um anjinho bonitinho lhes diz que nunca na vida você pode ficar tão lindo quanto ele.

Casos de inconsequências geradas por essa busca incessante não são poucos. Pipocam pela mídia, histórias em que a odisseia pelo corpo perfeito trazem, ao invés do esperado, deformações provocadas pelo exercício corporal mal feito, pelas cirurgias plásticas nos rostos e no corpo, entortando tudo, inclusive a cabeça de muita gente. Recentemente, em Vitória da Conquista, quatro jovens deram entrada em hospitais da cidade após terem utilizado anabolizantes – usados comumente em cavalos – para turbinarem sua musculatura, compartilhada na mesma seringa. Dois ainda correm risco de morrer e podem, um deles, ter os membros superiores amputados, e o outro, as pernas. Não é incomum, no cotidiano das academias, o uso de recursos extremos como estes. Na verdade, para atender a uma moda tão irreal, o absurdo se incorpora aos meios para alcançá-la.

Pensar o ideal estético do nosso tempo e tudo o que o implica não é possível sem compreender como somos tão fartamente bombardeados na nossa parcela narcisista. Bajulados, aliciados nas ruas, em casa, no trabalho, somos atalhados pela mídia naquilo onde mais somos vulneráveis, o nosso desejo. Vendem-nos o impossível em frascos, em carros, em móveis e imóveis, em estilos de vida e nos sentimos, mesmo sem ter como, parte disto. Entregues, nos deixamos levar. Queremos nos achar mais bonitos do que somos, e mesmo que o sejamos, ignoramos os riscos de querer ter (e não ser) mais. Por isso, tendemos, nessa lógica, a definhar também, sem nunca alcançar o reflexo. E, após tudo isso, não é possível que não sobre nem uma flor com nosso nome.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Teatro e Circo em pauta permanente

Por Marcelo Lopes

As artes cênicas têm no dia 27 de Março uma data importante. São comemoradas nesta data o Dia Internacional do Teatro e do Circo.

Responsáveis por criações das mais expressivas às mais tácitas, o teatro e o circo têm origens nas representações feitas pelos homens de tempos primitivos, quando imitavam animais e outros seres, transmitiam saberes e narravam de forma alegórica e sumamente corporal histórias de vida e arte. Homenageando deuses, criando e recriando personagens simbólicos, arquetípicos, ambas as artes se estenderam ao longo da história humana de forma popular e perene, e, guardando suas especificidades, existem ainda hoje por terem, sobretudo, a propriedade e a necessidade fundamental de existir para serem manifestações populares.

Por todo o mundo, a data de hoje encontra homenagens. Em Vitória da Conquista, o Projeto “Cultura em Movimento”, iniciativa da coordenação do Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima, propõe um novo um espaço de discussão sobre essas linguagens apresentadas nos meses temáticos do calendário SescultBA. A primeira edição acontecerá marcadamente neste 27 de março, às 18h., na Sala Polivalente do CCCJL, em referência ao Dia Internacional do Teatro e do Circo.

Faça a sua inscrição e participe efetivamente. 

A iniciativa é também uma realização da Diretoria de Espaços Culturais/ SUDECULT/ SECULT.

sexta-feira, 22 de março de 2013

O Ecad e suas fábulas

Por Marcelo Lopes

Gosto de contar histórias. Principalmente porque qualquer narrativa, da Ilíada a pequenos contos infantis como Chapeuzinho Vermelho, são simbolicamente ilustrativas de recortes da realidade e trazem uma carga forte de elementos que nos contam o que tivemos no passado, o que temos que lidar ainda hoje e, sobretudo, nos dão a exata medida dos nossos desafios e do tamanho do lobo que temos que matar para viver decentemente hoje em dia.

Desta forma, eis a nau.

Vinda fugida – digo, estrategicamente transferida - de Portugal por conta de um Napoleão em pele de lobo à suas costas, a Família Real Portuguesa desembarcou no Brasil em 1808. Primeiro em Salvador e logo em seguida no Rio de Janeiro para ficar. Quatorze navios trouxeram, além da família real, centenas de funcionários, criados, assessores, pessoas ligadas à corte portuguesa e logo se instalaram em casas de gente abastadas que foram - como diria – compulsoriamente convidadas a sair de suas residências para ceder lugar às visitas. Dentre outros aspectos que definiram a cara do nosso país, um dos maiores legados desse período é a criação de estruturas administrativas, até então inéditas no Brasil, que permitiram a D. João e sua corte gerir tudo por aqui, e Portugal por tabela enquanto Seu Lobo não fosse embora.

Pois bem, assim foram nomeados em terra brasilis uma infinidade de pessoas que manteriam a máquina do estado funcionando. Por não terem salário fixo, esses funcionários do interesse público recebiam comissões por serviços diversos em nome do Rei, parte destinada ao quinhão real, parte para seu próprio recebimento pecuniário. Alguém que cuidasse da alfândega, por exemplo, estabelecia valores que achava “justo” pelas mercadorias que circulavam nos portos, taxava-os, recebia os dividendos e repassava ao Estado, retirando antes o seu percentual. Logicamente, não havia uma eficiente fiscalização. Na verdade, era tudo mediado na base da burocracia sem regulamentação precisa, nas indicações de pessoas tecnicamente de “confiança”. Esta prática perdurou por muito tempo, enraizada na matriz de relações de favor e contrafavor de uma estrutura já cheia de problemas até que houvesse uma mudança legal que, posteriormente, estabeleceria um parâmetro de salários para os funcionários públicos. No entanto, este modelo de pagamentos percentuais “flexíveis” e de critérios muito pessoas (uma prática bem antiga na história humana, diga-se) já havia encontrado lugar cativo por aqui e continuou a ser realizada de forma menos visível. Oficialmente, estes “vencimentos” eram chamados de propina.

O Brasil de D. João ficou para trás e hoje a máquina do estado é outra (por favor, peço que não riam). Mas algumas coisas ainda são digna de nota. Ontem (21/03/13), li a seguinte notícia: “O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) condenou o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) e as seis associações representativas de direitos autorais que o compõem por formação de cartel ao fixar preços para atividades do mercado musical. Além disso, condenou o Ecad por fechamento de mercado. O órgão aplicou multa total de R$ 38,2 milhões, determinou que as práticas abusivas à concorrência sejam suspensas e recomendou ao Ministério da Cultura que passe a regular essa área”.

Para quem não sabe, o Ecad é o órgão brasileiro responsável pela a arrecadação e distribuição dos direitos autorais das músicas aos seus autores, uma instituição privada criada pela Lei nº5.988/73 e mantida pela Lei Federal nº 9.610/98. Na prática, ela define por seus próprios critérios o que e quanto deve ser cobrado pela execução de músicas em qualquer espaço ou suporte, repassando-os – em tese – a quem de direito. Normalmente, o ritual que impõe sua presença é bem padronizado, com poucas variações: um sujeito chega com autoridade de um representante direto do Papa perguntando sobre o evento, qual a programação e, quando não encontra, se existe algum folheto de divulgação. Em seguida apresenta-se como fiscal do Ecad, mostrando uma carteira (que em 90% dos casos ninguém nunca viu na vida para saber se é verdadeira ou não) e emite uma ordem de cobrança. Afora a parte da cobrança ao final, o ritual pode mudar um pouco a ordem, mas o susto é sempre o mesmo.

Esse estranho e obscuro órgão é envolto sempre em questionamentos por parte do setor cultural e econômica, principalmente pelos próprios autores que dizem representar. Casos esdrúxulos como a cobrança de taxas por execução de músicas em festas de casamentos, ou em Tv’s ligadas em bares, são exemplos de abusos atribuídos a entidade. Em agosto de 2011 o Escritório sofreu uma CPI pelo senado para investigação da suspeita de fraudes nos pagamentos de direitos autorais. No ano seguinte se envolveu em uma nova polêmica ao tentar cobrar de blogs por vídeos incorporados do Youtube, depois direcionada a empresa Google, dona do site. Devido a repercussão negativa de proporções internacionais e ao tamanho da “vítima” o Ecad voltou atrás.

Na moral da nossa historinha, o que não é possível aceitar é que um órgão privado, juntamente com suas entidades associadas, detenha, sem nenhum critério regulatório ou um mínimo de transparência, o monopólio de toda arrecadação e distribuição dos direitos autorais no Brasil. Na contramão de tudo o que vem sendo construído no sentido da liberação de produções criativas – a exemplo do selo Creative Commons, que atribui autoria a obras diversas, mas possibilita outro modelo relação/consumo com público – a entidade é responsável por manter uma rigidez de mercado com uma postura que, em última instância, circula sempre sob pretextos esfumaçados. Arcaico, o Ecad não difere em nada dos antigos funcionários da corte, com agravantes ainda maiores: é uma entidade com representação em todo o país, criada e avalizada por uma lei federal, e que – afora o que já se apura para além da legalidade – inspira desconfiança pela sua própria existência num modelo com ampla margem à corupção. Não há um marco regulatório sequer que lhe seja atribuído de forma clara, e o Estado, por sua ausência, é conivente com isto. Entre a “propina” de D. João e a propina que conhecemos tão bem, quais são os termos que nos garantem que a arrecadação do Ecad não são frutos de critérios e interesses sumamente pessoais?

Se quem canta os males espanta, nem sempre isso chega a ser verdade. Fica aí uma reflexão que deve seguir para um estágio posterior ao da simples discussão; vale exigir, denunciar e reivindicar um modelo mais justo para quem produz arte no Brasil. Ou então corremos o risco, nessa lógica invertida, de sermos compulsoriamente convidados a sair do nosso lugar de produtores da cultura para ceder espaço aos novos donos das nossas próprias ideias.

* Depoimento interesante. Confira: 



domingo, 17 de março de 2013

O que OUVE de tão ruim?

Por Marcelo Lopes

A onda do pesadelo cresce a cada dia. Nas esquinas, na porta dos bares, no vizinho, nos alto-falantes do clube, praticamente em todo lugar. É uma agressão sonora com a exata medida da falta de educação alheia. Manifesta-se, por exemplo, naquele carro que, desde às 7h30 da manhã de um final de semana, arrasta pelas ruas da cidade um reboque com quilos e quilos de equipamentos sonoros ligados à toda, tocando o último “sucesso” do arrocha, provocando uma experiência que, musical e qualitativamente inversa ao que nos sugere a primeira ária de Carmina Burana, do compositor Carl Orff, também nos causa estremecimento e nos escancara as portas do inferno. Quem já ouviu ou comparou os dois sabe do que estou falando.

Tom Zé: processo de criação musical incessante
Levantei hoje num domingo preguiçoso - um dos muito raros nos últimos anos em que não trabalho - e me vi presenteado logo cedo com uma programação no Canal Brasil em que se exibia o documentário Fabricando Tom Zé, do diretor Décio Matos Jr.. Fui novamente tocado pela originalidade e capacidade criativa do nosso povo e, como resultado, fui atingindo em cheio pela força inquieta e visceral do músico baiano, que, não raro, consegue extrair de nós, minimamente, a mais completa estranheza do mundo. Daí, fiquei pensando: a culpa é nossa ou tem gente conspirando para que progressivamente a música-nossa-de-cada-dia fique pior? Não dá para levantar aqui quais são os termos preponderantes de uma música de qualidade sem que alguns queiram me linchar, outros concordar, outros tornarem-se indiferentes, me acharem conservador ou algo assim ponderado. Afirmo, no entanto, que existe um limite sensível – há muito avançado sobre a lógica do bom senso – nos dizendo que a coisa tá feia, tendendo a piorar muito no que se costuma chamar de popular na música comercial.

Há muito a se considerar: é preciso entender, por exemplo, que os gêneros musicais, por suas inúmeras variáveis, podem induzir facilmente qual perfil de música pode ser tida como uma boa ou ruim. Entre estas variáveis está, obviamente, o gosto pessoal. O bom para mim pode ser terrível para você e vice-versa. Arranjos complexos não necessariamente significam uma peça musical interessante, como também um arranjo simples pode demonstrar uma capacidade agregadora incrível, a exemplo do que fizeram Elvis Presley, Johnny Cash, Beatles (em início de carreira) e tantos outros ícones do rock. De tempos em tempos, e hoje cada vez mais, o mercado da música nos apresenta a bola da vez, perscruta-nos os ouvidos, constrói ícones e nos oferece, com campanhas de divulgação impossíveis de fugir, o gênero do momento, não importando qual seu conteúdo. Já recebemos nesta fórmula desde a Bossa Nova de João Gilberto e a Pilantragem de Wilson Simonal nos anos 60, passando pela Discoteca das Frenéticas na década de 70 e o Rock Nacional da Blitz, Barão Vermelho , RPM e Legião Urbana nos anos 80, à Lambada (anos 80/90), o Axé e o Sertanejo (no atual formato a partir dos anos 90) até chegarmos às versões universitárias de tudo quanto é gênero, como se a referência à uma graduação acadêmica os tornasse melhores do que de fato são.

Há quem diga que a música tem que dialogar com o público e ponto, e que este é um critério fundamental. Concordo. Mas com ressalvas também fundamentais. O nosso povo, o brasileiro, é reconhecidamente musical, vibrante, intuitivo para os sons mais diversos, dos mais melodiosos aos mais viscerais. Daí termos um leque de diálogo infinito. Desta forma, tudo o que nos vibra, pulsa e reverbera é, a priori, passível de nos empolgar num apelo instintivo, orgânico até a raiz. O que me leva a pensar em um mercado que privilegia e abusa disto para estimular um universo musical que nada acrescenta à criatividade humana, focado apenas no que há de mais primário na exigência do público, exclusivamente para gerar seu lucro. Na prática, lança mão, com fins econômicos, da releitura de uma coisa antiga, uma versão moderna do pão (substituído em geral pela cerveja) e circo (com entretenimentos similares e simbolicamente à mesma altura).


Lançamento da Som Livre:  letras e arranjos do gênero tendem a
justificar seu conteúdo artisticamente duvidoso como sendo do "povo"
Estamos falando de músicas despropositadas, construídas em onomatopeias e refrões infinitos, emendadas com algum ritmo pulsante, capazes de fazer mexer a cintura e os miolos de um sem-número de pessoas, lotando shows por todo canto do país. A essas peças “musicais” não importam quais as escabrosidades sem-pé-nem-cabeça que costumam tratar nem o tema da vez; circulam quase em sua totalidade sobre algum tema sexual, sem meias palavras. Tecnicamente, não se importam se é o teclado quem toca ou se o arranjo vale o espetáculo. Gêneros de vertentes unicamente mercadológica como o arrocha, o pagode, o funk, o sertanejo e adjacências (com obras de raras exceções), em última instância, nos sacodem pelo princípio mais básico do corpo humano, pondo de lado tudo o que nos diferencia do restante do reino animal: nossa capacidade de pensar, criar e reconhecer a criatividade, nossa e de outros. Não se importam de se posicionar à parte do que se pode chamar de feeling, a alma musical, aquilo que emerge da capacidade criativa da música e da letra (quando esta se faz presente), e nos fazer sentir algo além. Um legado artístico cujo espírito é nos intuir para além do simples efeito sonoro, fazendo levar para depois da experimentação auditiva o barro essencial que nos mantém em pé como seres de sensibilidade. Esta essência é o que nos desenvolve para um estágio posterior a qualquer batida rimada e sem conteúdo que nada nos acrescenta à vida.

Quando afirmo esta posição, falo de um lugar muito específico: sou educador e a raiz do meu trabalho é a fluência cultural. Por isso, vivo na mediação entre o que é sumamente popular (qualquer que seja sua manifestação) e aquilo que desenvolve o ser humano em todas suas instâncias. Um pensamento que, desta forma, entra em choque com um mundo limitador de pessoas, propagador de manifestações que nada desenvolvem a não ser doses cada vez maiores de uma conveniente falta de educação, que perpetua programas de TV emburrecedores, músicas cada dia mais acéfalas, discursos cada vez mais incoerentes e realidades cada dia mais cruéis em espetáculos diários como meras estatísticas de mercado.

Ariano Suassuno: pensador da cultura popular brasileira
Se pensamos em crescer como seres humanos nosso parâmetro é sempre acima do atual estado em que nos encontramos. Isso redunda naquilo que praticamos no dia-a-dia, por isso avalio diariamente o que ouço e o que nos oferecem para ouvir, aquilo que normalmente se ouve nos celulares dos nossos pares, no som dos seus carros e casas, nos espaços que frequentam, nas conversas que entabulam. Filio-me com muito pesar a Frank Zappa que dizia que “a maioria das pessoas não reconheceria uma música boa se ela viesse e as mordesse na bunda”, principalmente por se entregarem a uma preguiça mental como se essa fosse a mais recente moda da estação. Mas, ainda assim sou mais a fim ao nosso grande Ariano Suassuna que afirma que “a massificação procura baixar a qualidade artística para a altura do gosto médio. Em arte, o gosto médio é mais prejudicial do que o mau gosto... Nunca vi um gênio com gosto médio.” E ainda acrescenta, “o otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso”.

Assino embaixo.

Enfim, Tom Zé me acordou hoje fazendo um sonoro sacolejo na alma.